PADRE CÍCERO

A VIDA POLÍTICA DE PADRE CÍCERO
Daniel Walker

“Nunca desejei ser político, mas em 1911, quando foi elevado o Juazeiro, então povoado, à categoria de Vila, para atender aos insistentes pedidos do então Presidente do Estado, o meu saudoso amigo Comendador Antônio Pinto Nogueira Accioly, e para evitar, ao mesmo tempo, que outro cidadão, na direção deste povo, por não saber ou não poder manter o equilíbrio de ordem até esse tempo mantido por mim, comprometesse a boa marcha desta terra, vi-me forçado a colaborar na política”.

Dessa forma Padre Cícero explicou sua opção política, conforme está escrito no seu Testamento. Todavia, um estudo mais apurado da sua história leva à conclusão de que seu ingresso na vida política aconteceu de fato três anos antes, como mostro a seguir.

Antes da chegada de Dr. Floro Bartholomeu da Costa a Juazeiro, Padre Cícero não tinha nenhuma atuação política, mesmo já estando afastado da Igreja havia mais de 15 anos. Então, faz todo sentido dizer que o seu ingresso na vida política juazeirense se deu com a chegada de Floro ao povoado de Juazeiro, em 1908, oportunidade em que eles se envolveram na luta em prol da independência política de Juazeiro.

Enquanto vivo, divulgando sempre a força eleitoral do Padre Cícero, e se aproveitando como seu representante, Floro segundo a professora Luitgarde Oliveira Cavalcante Barros escreveu na introdução da obra Cícero Romão Batista e os fatos do Juaseiro – Autonomia Político-Administrativa, Editora Senac Ceará, 2012:

Deu visibilidade ao Patriarca nos grandes círculos políticos, que articulando-o através de correspondência social, principalmente em datas e acontecimentos importantes, com as mais altas autoridades do país.

Depois da morte de Floro, em 1926, mesmo tendo sido eleito para a vaga de deputado federal, Padre Cícero começa a promover os primeiros passos para se retirar da vida política, e não comparece à posse.

Sem ânimo e um tanto quanto decepcionado com os novos rumos da política juazeirense e já em avançada idade, ele percebeu que não tinha mais capacidade de transformar em capital político sua prevalência sobre os romeiros e sua liderança sobre os coronéis como forma de manter a harmonia na região.

Em seu Testamento, feito em 1923, ele explica sua saída da vida política assim: “Após a queda do Governo Accioly, por motivo de ordem moral, retraí-me da política”. Convém notar: O declínio da oligarquia Acioly ocorreu em 1912.

Entretanto, há historiadores que apontam outras razões para o ingresso do Padre Cícero na política. Marcelo Camurça, por exemplo, na palestra que proferiu no III Simpósio Internacional – Padre Cícero do Juazeiro. E... quem é ele?, Juazeiro do Norte, 18-24 de julho de 2004, emitiu esta opinião para definir o lado político do Padre Cícero:

A frase atribuída ao Padre Cícero no seu Testamento, “nunca desejei ser político” foi muitas vezes utilizada por seus críticos comentadores, não como “prova” da não aptidão do padre pela política, mas como parte de uma contradição, de um paradoxo, de quem diz não desejar a participação política, mas que ocupou tantos e variados cargos de acentuada representatividade política. Penso que o Padre Cícero parece ter se sentido compelido a entrar na política, embora por motivo não político, e sim numa linguagem de hoje, pelas ”pastorais-sociais”, sem possuir, afirmo eu, a lógica do jogo político. E foi esta a autoimagem que ele quis passar no seu Testamento para a posteridade, não de alguém que se jactava por sua notoriedade política, mas, ao contrário, de quem justifica sua inserção na política dentro de um ideal maior, pelo qual gostaria de ficar reconhecido: como homem religioso! Padre Cícero fez política sim! Soube comportar-se com as regras desta política (oligárquica) mas sempre presidida pela cosmovisão católico-sertaneja que organizava sua postura e ética de vida. Desconsiderar esse aspecto crucial de sua personalidade e do movimento que liderou, pode levar a equívocos de compreensão do rico, complexo e ambíguo processo sócio-cultural-religioso dos sertões nordestinos.

Padre Azarias Sobreira, em seu livro O Patriarca de Juazeiro, p.219, acredita que:

A razão das razões de Padre Cícero ingressar na vida política foi a necessidade que experimentava de evitar que seu povo, que nunca tivera oportunidade de dirigir os próprios destinos, sempre sujeito ao Crato, tivesse sorte ainda pior.

Mas há uma versão completamente destoante dessas acima, citadas para explicar o ingresso de Padre Cícero na vida política. Divulgada por Otacílio Anselmo no seu livro Padre Cícero, Mito e Realidade, p. 501, com referência a um testemunho de Vicente Pereira da Silva citado pelo escritor Abelardo F. Montenegro, Padre Cícero teria dito: “O que Deus não quer, o diabo não enjeita. A Igreja não me quer, pois eu me meto na política”.

Essa opinião  é pouco divulgada em publicações  sobre a vida do Padre Cícero.
Embora alguns escritores tenham divulgado em seus livros (por exemplo, Amália Xavier de Oliveira, O Padre Cícero que eu conheci, p. 213) que Padre Cícero foi eleito deputado federal, mas não tomou posse, deixando expirar o mandato, ele chegou a enviar e receber muitos telegramas como deputado federal, conforme cópias encontradas em seu arquivo.

Padre Antenor Andrade, em seu livro Cartas do Padre Cícero, p. 367, acentuou que ele “ao deixar o Vale, com destino ao Rio, a fim de tomar assento na Câmara, só chegou até a Bahia”.

Eis abaixo transcrições de dois telegramas com referência ao deputado Padre Cícero:

Fortaleza. 75-26- 6. Deputado Padre Cícero Comunico ilustre amigo que acabo assinar ato nomeação Bacharel José Saldanha para exercer cargo promotoria de Milagres. Saudações, Desembargador Moreira, Presidente do Estado.

Off. 20 - 72 - 9 - 1 2 Exmo. Dr. Arthur Bernardes M.D. Presidente República -Rio.
Sinto imenso prazer transmitir V. Exa. grande satisfação acaba experimentar povo Juazeiro com inauguração estação ferroviária aqui. Notável acontecimento realizado sob benemérito governo V. Exa. marcará início fase progresso social, econômico esta futurosa região cearense, tomando inesquecível seu honrado, destacado nome entre nossos concidadãos. Queira, portanto, V. Exa. aceitar minhas agradecidas cordiais saudações. As) Pe. Cícero Romão Batista - Deputado Federal.

Com a morte do ardiloso Dr. Floro houve uma correria de pretendentes do Cariri e de Fortaleza à vaga aberta de deputado federal. Padre Cícero, como dono natural da vaga, a princípio tentou emplacar o nome do seu amigo Dr. Juvêncio Santana, mas os chefes políticos de Fortaleza não aceitaram. Então, não lhe restou outra opção, senão ele mesmo aceitar a disputa do cargo, enfrentando uma eleição. Ganhou fácil, confirmando sua liderança política, mas contrariou os interesses de outros pretendentes da Capital.

Com o encerramento da vida política, após 18 anos de existência, durante a qual ilustrou a biografia sendo prefeito, deputado e vice-presidente do Ceará, tem início a terceira e última fase da sua existência, caracterizada pela senilidade e inatividade da vida religiosa e política.

Sobre seu comportamento na política ele deixou registrado no seu Testamento que:

Apesar das bruscas mutações da política cearense, sempre procurei conservar-me em atitude discreta, sem apaixonamentos, evitando sempre as incompatibilidades que pudessem determinar choques de efeitos desastrosos. Para conseguir isto, muitas vezes tive de me expor ao conceito de homens sem ideias bem definidas.

Há indícios suficientes para afirmar que Padre Cícero era o prefeito de Juazeiro, mas quem administrava tudo de fato era o Dr. Floro. Amália Xavier de Oliveira, op. cit., p.220, pessoa da casa do Padre Cícero, chegou a afirmar que ouviu do padre esta afirmação melancólica: “Sobre o Governo do Município eu nada sei; quem faz tudo é o Dr. Floro”.

O escritor Nertan Macedo, entretanto, em seu livro Floro Bartholomeu, o caudilho dos beatos e cangaceiros, p.213, não põe muita fé nessa afirmação de dona Amália, ao fazer esta observação:

Floro, como é sabido geralmente, morreu muito pobre, quando já era, então, o Padre Cícero senhor de opulenta fortuna, senão o maior, mas um dos maiores latifundiários do Nordeste. Os seus inúmeros haveres — terras, sítios, fazendas de gados, prédios etc. — espalhavam-se pelas serras e sertões do Cariri, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, além de muito dinheiro e joias que os romeiros, vindos de longe, depositavam, como dádivas, nas mãos do Patriarca. Ora, se Floro morreu paupérrimo, diante de tanta riqueza, o seu domínio sobre o Padre não seria, assim, tão absoluto, como se diz, ou, aliás, o Padre, que não resistira, mas antes consentira naquele domínio, especialmente no que concernia aos negócios políticos, tivera força bastante para preservar avaramente da absorção do baiano os seus ricos e intocáveis cabedais.

O General-médico cratense, Pinheiro Monteiro, em carta enviada ao Padre Azarias Sobreira e publicada no livro deste, op. cit., p.234, analisando a parceria política Padre Cícero/ Dr. Floro disse que os dois

Eram personalidades que muito se diferenciavam temperamentalmente. Nada existia de comum entre a atitude autoritária, embora revestida de cavalheirismo e gentileza de um, e a paciência e providencialismo do outro. Ao Padre Cícero, afeito aos deveres e hábitos sacerdotais, eram flagrantes a inadaptação e o desajuste. Enquanto ele se esforçava por não contrariar, por consideração alguma, seus escrúpulos de consciência, o outro pouco se incomodava com os juízos da opinião pública. Ao primeiro faltava todo e qualquer laivo de ambição política; ao segundo, o que dominava era a ansiedade de subir e dominar o Estado, galgar depois o Parlamento, como depois o fez.

Mas parece não haver dúvidas: foi Floro quem de fato balizou a vida política do seu amigo Padre Cícero. Na verdade, a vida política do Padre Cícero se mistura com a de Dr. Floro, numa simbiose tão perfeita (embora fossem de personalidades diferentes), que muitas vezes ficava difícil saber quem realmente estava atuando, se o médico baiano ou o padre sertanejo.

Entre eles perdurou por 18 anos uma intensa e mútua amizade. Floro foi sem dúvida um grande defensor do Padre Cícero. Disso não há a menor dúvida. Mas essa amizade trouxe ao mesmo tempo, tanto benefício como malefício. Muita coisa errada feita por Floro respingou no Padre Cícero, manchando-lhe a biografia. E isso fica bem evidente em dois episódios polêmicos: a outorga da patente de Capitão a Lampião e o Pacto dos Coronéis. Nos dois episódios existe como pano de fundo tal qual um espectro a figura emblemática de Dr. Floro, considerado por muitos escritores como uma espécie de alter ego ou braço direito do sacerdote.

No caso da outorga da patente de Capitão a Lampião, o padre ganhou a pecha de coiteiro do cangaceiro; e no caso do Pacto, ficou com a fama de Coronel, no sentido mais pejorativo do termo. Nos dois Floro atuou como agente provocador, sobrepondo sua vontade à do padre, deixando este como protagonista para arcar com as consequências.

Uma análise da vida do Padre Cícero, baseando-se na leitura da sua vasta bibliografia, permite deduzir que sua vida política foi tão intensa quanto a sua vida religiosa. Com efeito, segundo declaração de Padre Neri Feitosa, no livro Padre Cícero e Juazeiro – Textos reunidos, p. 134

Na política é que ele se revelou extraordinário. Fez uma política toda diferente da política de seu tempo: sem violência, sem barganha, sem astúcia, sem inimizade, sem egoísmo; fez uma política de conciliação, de “Pacto dos Coronéis”, de socorro ao povo esmagado pelas intempéries, de construir o Juazeiro.

Todavia, é preciso destacar este ponto muito importante: a atuação política de Padre Cícero se deu com pouco exercício de atividade cerebral (e não podia ser diferente, pois ele nunca quis ser político, como já foi visto) sendo Floro, como seu alter ego, o homem de execução de praticamente tudo.

Conforme pesquisa feita pelo escritor Renato Casimiro, publicada no www.historiadejuazeiro.blogspot.com.br

A passagem de Padre Cícero como prefeito/intendente de Juazeiro está dividida em três períodos: a grosso modo, de 1911 a 1912, de 1914 a 1926, e de 1926 a 1929 Na prática pode ser entendido como um único manda-to de 12 anos. Mas, legalmente, foram seis mandatos devidamente legitimados por atos formais. Somando todos os períodos em que esteve à frente dos destinos de Juazeiro, Pe. Cícero foi seu gestor por 15 anos, 1 mês e 29 dias. E a rigor, isto se desenvolveu ao longo de 8 mandatos.

Tanto na vida religiosa quanto na vida política de Padre Cícero estão registrados episódios polêmicos até hoje sem consenso entre os estudiosos. É praticamente impossível saber qual delas lhe causou mais lucro ou prejuízo, pois em ambas ele se envolveu igualmente em eventos que lhe trouxeram aborrecimento e prazer.

A questão religiosa lhe rendeu uma suspensão de ordem pela qual lutou em vão até morrer; na Revolução de 1914 provocou a inimizade de grandes figuras da política, do clero e da intelectualidade brasileiras. Por outro lado, se sua evangelização lhe trouxe a santificação junto à Nação Romeira; a Prefeitura de Juazeiro lhe permitiu realizar a edificação da cidade, seu grande projeto de vida.

E assim, com altos e baixos, errando e acertando ao longo de quase um século de existência como religioso e político, Padre Cícero construiu e consolidou uma biografia de primeira linha, e seu nome, até hoje, é objeto de estudo, despertando ódio e amor. Ele teve a grandiosidade inerente aos grandes homens e as fraquezas comuns a todo mortal. Contudo, foi uma pessoa extraordinária, a figura mais estudada do clero brasileiro, o homem que colocou Juazeiro no mapa do Brasil e o mais carismático líder político e religioso do Brasil.

É por coisas assim que vale a pena estudar também a vida política do Padre Cícero, pois ela é tão importante quanto a sua vida religiosa.
(Extraído do livro Padre Cícero, Lampião e Coronéis, Daniel Walker)

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